Festividades
religiosas da Minha Terra
Em tempos que lá vão, e
talvez mesmo nos de hoje, sei lá… a vida coletiva de Redondo fez-se e
desenvolveu-se em volta da Igrejas.
Perdida, embora, a mística
devoção dos tempos idos, o povo, por hábito de séculos, não deixou o convívio dos
seus santos, aconchegando-se a eles nas horas festivas, procurando-os com
promessas e rezas nos momentos de aflição.
E em toda a roda do ano,
desde as imagens do lar, nos oratório floridos, até aos altares, nas igrejas,
era um intenso fervor, o deste povo, procurando obter nas festas votivas o
máximo brilho, e o esplendor mais pitoresco.
Havia lindas festas
religiosas na minha terra…
Lindas pelo seu aspecto
exterior, que outro não viam, nem, compreendiam os meus olhos de menino
abrindo-se curiosos para a vida, e curiosamente olhando para ela.
Na minha terra, outrora,
eram as procissões grandes e belos quadros, pelo colorido e pela imponência.
A procissão dos Passos era grandiosa,
a gente grada da terra envergava uma opa, ou para levar um anjo, ou para levar
o andor ás costas, ou para levar uma vara de mando.
Antes da procissão sair
havia sermão.
O sermão exigia pregador de “trus”
, porque no fim tinha que fazer uma peroração ardente e forte, finda a qual
corria, no altar-mor, um pano, deixando ver num quadro grandioso, a imagem do Senhor
dos Passos, toda envolvida de luzes e velas e de anjos que tinham nas mão os
instrumentos da Paixão-cravos, esponjas, coroas de espinhos, etc.
Depois a procissão saia,
entre massas compactas de povo, e na Praça dava-se o encontro, episódio que
consistia em a Senhora de ao Pé da Cruz, acompanhada de S. João Evangelista,
esperar a chegada do andor do Senhor dos Passos, e mal o avistavam, correr para
ele.
E outras procissões havia,
que me lembre, a de Domingo de Cinzas com muitos andores, e as que se faziam
para pedir chuva, que metiam o poder do mundo de gente-
Durante o percurso de alguma
procissões, pendiam nas janelas colchas do mais variado matiz e da mais
preciosa lavra.
…
Grandes, eram as festas da
Semana Santa, que na minha terra tinha todo o cenário e toda a carpintaria duma
grande peça teatral.
Eram os Ramos, com as palmas
e as cruzes de alecrim que o povo ia colocar nas searas.
Eram as Trevas, donde os
rapazes vinham, à tardinha, tocando trancalhetas e matracas.
Eram as Igrejas todas
abertas, muito bonitas, o ar cheirando a alecrim e rosmaninho, e na igreja da
Saúde, as “beatas”, num coro de rótulas, cantando elegias místicas, uma das
quais ainda me soa nos ouvidos como um cântico de saudade.
A noite, a procissão das
Bandeiras, só com opas pretas, que à luz de lampiões velados visitavam as
igrejas, ao som dum cantochão triste.
***E VINHA O GRANDE DIA***
A
Sexta –feira da Paixão do Senhor. A procissão à noite é das
fantasmagorias mais impressionantes que maus olhos têm visto, mesmo quando
sonham.
O esquife de Deus vem
rodeado de luzes.
Atrás, vestidas de negro,
vão a imagem da Senhora de ao Pé da Cruz e S. João Evangelista.
Opas de todas as cores,
tapando as cabeças, e as luzes veladas em papel.
Um cantochão, acompanhado de
um barítono, fere a sonoridade da noite primaveril.
Por vezes o cantochão cala-se,
e a procissão estaca.
A multidão que redemoinha aquieta-se
como quem espera.
E de longe, vem uma voz de
soprano cantando a Paixão do Senhor. É o “VOS, OMNES”, uma mulher vestida de
preto com um véu branco, que traz nas mão a sagrada verónica.
Em determinados pontos a
procissão pára, levantam o véu ao “Vos Omnes”, e ela que é sempre uma donzela,
canta na quietude da noite, e no silêncio da multidão.
Mal acaba, soa, do outro
lado, ao longe, uma matraca, e a procissão, entre luzes, murmúrios de rezas, e sussurros
de povoléu que dispersa, para ir ao outro canto ouvir o “Vos Omnes”, segue o
seu caminho ao som dos cânticos de três Marias que vão atrás do ataúde.
Ao recolher, a multidão
enche a Igreja e lá em cima no Altar, à luz escassa de duas velas, os turíbulos
enchem de incenso o túmulo de Cristo, e um padre reza singelamente os
responsos.
E no meio do silêncio da
Igreja cheia de gente e às escuras, mal o padre diz “Requiescat in Pace” sente-se
o estampido seco da tampa do túmulo que cai, e a seguir, imediatamente, o “Vos
Omnes” desfere, pela vez derradeira, o seu cântico de amor divinamente triste.
Depois é o sábado de aleluia.
As cortinas dos altares que
se desceram, e um guizalhar fremente de campainhas e chocalhos.
Quinta Feira da Ascensão,
singela, linda e pouca gente.
O povo, nesse dia, debanda
logo de manhã para os campos.
E á igreja poucas pessoas
vão.
No altar um só padre, o prior
da freguesia com sua capa de asperges.
No coro, o órgão reboando
uma melodia de suavidade pagã.
Soltam-se pela igreja
andorinhas, que ao pescoço tem uma fitinha com um guizo.
Flores muitas flores pelos
altares.
DOMINGOS
ROSADO 1929
Procissão
de Sexta Feira Santa
Em telas de Rembrandt, incendiada
Surge na noite a triste Procissão…
Passa num esquife, à luz dum clarão
O Cristo morto, a carne ensanguentada---
Num silêncio de noite amargurada
Canta uma voz de amor e de paixão
Voz que pergunta, cheia de aflição…
…Vede se há dor a esta comparada…
Respondem ais de agonia e mágoa…
A Virgem vai, aos olhos rasos de água,
Toda de negro atrás do ataúde…
Chamas ardem num fúnebre palor…
E a multidão sussurra num rumor…
Como as águas longínquas dum açude…
***1911***
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