Professor, ensaísta, historiador, crítico literário, Hernâni António Cidade
(1887-1975) era natural do Redondo, distrito de Évora. Seu pai, António Cidade,
era carpinteiro de carros e foi ao som da “orquestra da serra e do malho” que
Hernâni cidade disse ter aprendido a exatidão do trabalho, o valor do esforço,
o sagrado cumprimento das tarefas. António Cidade, para além de artífice,
cantava baladas e histórias, recitava versos de Augusto Gil, Guerra Junqueiro,
António Nobre: à noite, ao serão, envolvia os filhos e os netos naquele
universalismo alentejano, onde ressoava ainda a estepe, há pouco desaparecida.
Hernâni Cidade, sem jeito para as artes do ferro, franzino demais para as tarefas do campo, dado mais às letras e à Escola foi aceite no Seminário de Évora, onde se mostraria aluno brilhante, e onde sentiu, disse-mo várias vezes, a alegria enorme de uma grande fé.
Acabada no Seminário de Évora a primeira etapa da sua formação, foi escolhido para seguir estudos na Universidade Gregoriana de Roma; mas, abalado intelectualmente na sua fé pelas leituras mais recentes (o pequeno caixote de livros que trouxe do Seminário continha Bakunine, Marx, Engels, Pesttalozzi, Gorki), dividido entre um crescente agnosticismo intelectual, uma sensibilidade religiosa que o acompanhou até à morte e uma gratidão imensa ao Seminário que gratuitamente lhe dera a possibilidade de estudar, escolheu o caminho da lealdade, expondo ao arcebispo, D. José Eduardo Nunes, o seu desejo de frequentar a Universidade e seguir a vida laica. Também aí o Seminário o respeitou como Homem e generosamente lhe concedeu que ficasse os meses necessários para obter a equivalência ao ensino secundário oficial.
Foi como Prefeito do Colégio Calipolense e como explicador particular que fez o Curso Superior de Letras e obteve, com distinção, a habilitação para o Magistério Secundário.
Tomou posse como professor efetivo no liceu de Leiria a 9 de novembro de 1914. Durante os anos que permaneceu neste liceu, foi professor de língua e de literatura portuguesas e os apontamentos minuciosos de então revelam tanto o aprofundamento meticuloso dum estudo sério, como o entusiasmo de servir os alunos e a comunidade, na convicção de que a “obra de arte é revelação individual e colectiva”. Foi coerentemente intensa a sua participação na vida da cidade e nos seus problemas, escrevendo mesmo uma peça de teatro, A Zara, representada a favor da reconstrução do Castelo de Leiria.
Em 26 de outubro de 1916, mobilizado, como cabo, porque sabia ler e escrever, participou, na Primeira Guerra Mundial, com grande firmeza e sentido do dever, distinguindo-se, sobretudo pela sua coragem ao serviço da paz e da dignidade humana: em 14 de agosto de 1917, apenas com três soldados, atravessa a terra de ninguém, debaixo de fogo, e vai às linhas alemãs buscar os soldados portugueses feitos prisioneiros num raid inimigo. Foi-lhe atribuída a Cruz de Guerra. Vai também debaixo de fogo à terra de ninguém buscar um alemão ferido que traz para o abrigo português; em sinal de gratidão o soldado moribundo ofereceu-lhe o cinturão e o sabre, que toda a vida conservou pendurado na estante por detrás da sua mesa de trabalho. Esse troféu da Paz pertence hoje ao seu bisneto mais velho, Miguel Moura. Preso pelos alemães, depois da batalha de 9 de abril de 1918, continua a sua catequese cívica, no campo dos oficiais prisioneiros. Não só prossegue o estudo do alemão, como organiza aos Domingos conferências sobre literatura portuguesa, lutando contra a degradação humana provocada pelo cativeiro. A primeira Conferência chama-se “Camões, Poeta Europeu”, visa a “ampliação moral e intelectual” da civilização europeia e situa Camões e Portugal. «Ao Domingo prega o Cidade…», diziam os colegas.
Foi neste esforço solidário que encontrou a sua vocação de professor universitário. Em 1919 inicia, por convite, a sua docência na Faculdade de Letras do Porto, aí se mantendo até 1930, data em que Salazar resolveu apagar esse foco de inovação, onde a liberdade de pensamento resistia.
Convidado a ingressar na Faculdade de Letras de Lisboa, pede a abertura de concurso, a que concorre, sendo aprovado por unanimidade. Para trás, ficava vincada uma forte experiência de grupo, de camaradagem e de ideal, expressa na sua colaboração na revista Águia e no movimento da Renascença Portuguesa. O seu livro Ensaio sobre a Crise Mental do Séc. XVIII - editado pela Imprensa da Universidade da Coimbra, em 1929, fruto, como todos os seus livros, das aulas dadas - testemunha a dialética do quotidiano transportada para o século XVIII onde se debatia uma “atitude intelectual da Idade Média que teimava em aqui persistir e a atitude intelectual do mundo contemporâneo de quem não podia deixar de ver o triunfo definitivo”. Hernâni Cidade considerava este, o seu «livro mais interessante».
Neste período, a correspondência assídua com Joaquim de Carvalho, António Sérgio, Newton de Macedo, Câmara Reis, e a amizade íntima com o Dr. Santos Silva, seu padrinho de casamento, marcaram uma fase de luta contra a implantação do regime, luta que profundas divisões foram enfraquecendo.
A vinda para Lisboa, apesar dos contactos com o grupo da Seara Nova, mas também com
Fidelino de Figueiredo, António Sérgio, o Padre Joaquim Alves Correia (que
vinha ao Domingo ler o Evangelho a sua casa), Augusto Casimiro, Alberto
Candeias, marca um afastamento da luta política. Em 1934, a condenação do Diário Liberal, em ação movida pelo
jornal O Século, marcou uma época de expressiva solidariedade. Conhecida a sentença
condenatória, a sua casa encheu-se de flores, de amigos e de alunos que
aproveitaram o ensejo para a publicação do livro Homenagem a Azevedo
Gomes, Hernâni Cidade, Joaquim de Carvalho, editado pelos alunos da Universidade de
Coimbra, Faculdade de Letras de Lisboa e Instituto Superior de Agronomia. No
manifesto se entende que esta é uma primeira tentativa de organizar e dar
expressão ao descontentamento dos jovens universitários portugueses. Tendo sido
em 1935 retirado da lista dos professores universitários demitidos, por
intervenção direta, junto de Salazar, do Prof. Cordeiro Ramos, consagra-se
inteiramente à vida universitária, mantendo, porém, uma forte solidariedade
cívica, ora discreta ora pública, quando necessária. Foi agraciado pela França
em 1956 com a Legião de Honra. Já no fim da vida aceitou a condecoração da
Ordem da Santiago, tendo as insígnias sido oferecidas pelo Povo do Redondo, por
subscrição pública, onde o donativo máximo de cada um era de 50 centavos.
Para além da soma imensa de trabalho, de estudo e de reflexão que constrói a sua obra, o que de mais relevante ela trouxe é a sua modernidade intrínseca, o seu contexto sociológico, o aspeto vivo e global da sua comunicação, mais evidente em Tendências do Lirismo Contemporâneo (1939) Conceito de Poesia como Expressão de Cultura (1945) Portugal Histórico-Cultural (1947) Literatura Autonomista sobre os Filipes (1948), mas sempre presente numa dialogante e dialética forma de viver a expressão artística. António Sérgio e Hernâni Cidade trouxeram, por vias diferentes, Luís de Camões, para o mundo comum e ainda hoje as obras Camões Lírico e Camões Épico são das mais vendidas. À Marquesa de Alorna, a Bocage, ao Padre António Vieira e à sua Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício devemos imagens literárias e humanas que prolongaram o seu diálogo com a vida porque, como ele afirmava: “Primeiro está a aula e depois o capítulo”.
Esta sua responsabilidade cívica, de exatidão e cumprimento do dever, socialmente entendido, marcou a clareza da sua inteligência e o exemplo raro da sua profunda honestidade intelectual e afetiva. Em 1972, quando se comemorou mais um centenário da publicação de Os Lusíadas, Hernâni Cidade entendeu fazer uma edição reduzida para as escolas, em que os resumos em Apêndice foram feitos por ele próprio; a edição era também da Imprensa Nacional. Em 1975, tanto eu como minha irmã prescindimos dos Direitos de Autor, para que a obra tivesse uma edição escolar. Nada foi possível. Estávamos todos unidos no Ideal da Liberdade, mas os caminhos para lá chegarmos revelavam experiências de vida muito diferentes.
Para além da soma imensa de trabalho, de estudo e de reflexão que constrói a sua obra, o que de mais relevante ela trouxe é a sua modernidade intrínseca, o seu contexto sociológico, o aspeto vivo e global da sua comunicação, mais evidente em Tendências do Lirismo Contemporâneo (1939) Conceito de Poesia como Expressão de Cultura (1945) Portugal Histórico-Cultural (1947) Literatura Autonomista sobre os Filipes (1948), mas sempre presente numa dialogante e dialética forma de viver a expressão artística. António Sérgio e Hernâni Cidade trouxeram, por vias diferentes, Luís de Camões, para o mundo comum e ainda hoje as obras Camões Lírico e Camões Épico são das mais vendidas. À Marquesa de Alorna, a Bocage, ao Padre António Vieira e à sua Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício devemos imagens literárias e humanas que prolongaram o seu diálogo com a vida porque, como ele afirmava: “Primeiro está a aula e depois o capítulo”.
Esta sua responsabilidade cívica, de exatidão e cumprimento do dever, socialmente entendido, marcou a clareza da sua inteligência e o exemplo raro da sua profunda honestidade intelectual e afetiva. Em 1972, quando se comemorou mais um centenário da publicação de Os Lusíadas, Hernâni Cidade entendeu fazer uma edição reduzida para as escolas, em que os resumos em Apêndice foram feitos por ele próprio; a edição era também da Imprensa Nacional. Em 1975, tanto eu como minha irmã prescindimos dos Direitos de Autor, para que a obra tivesse uma edição escolar. Nada foi possível. Estávamos todos unidos no Ideal da Liberdade, mas os caminhos para lá chegarmos revelavam experiências de vida muito diferentes.
Por Helena Cidade Moura
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